terça-feira, 26 de abril de 2011

As Crônicas de Hirsey - As Folhas de Prata (Prólogo)

Do cume da montanha, Fënfallas podia avistar a cidadela proibida. Aos olhos mortais ela nunca teria sido notada, apenas uma grande clareira entre as copas frondosas e verdejantes na floresta dos druidas, mas a magia que reside no coração dos elfos permitia que seus olhos e ouvidos aguçados percebessem não só aquilo que passava despercebido a todas as outras raças, mas também aquilo que havia lhes sido ocultado por mágica.

O alto elfo desmontou sua égua parda e a amarrou em um tronco seco. A paisagem aqui, longe do domínio sagrado dos druidas, era bem diferente. Não havia verde, apenas um chão seco e poeirento e o que um dia haviam sido grandiosas árvores frutíferas agora não passavam de troncos cinzentos e retorcidos. A terra batida e rachada parecia abraçar as ruínas do que aparentava um dia ter sido uma cidade e os cinzentos blocos de alvenaria quebrados contrastavam com os branquíssimos crânios de boi que ali jaziam.

O alto elfo sentou-se em uma pedra enquanto bebia o que restou da água de seu cantil de um gole só. Havia feito uma longa viagem desde sua cidade natal, mas nem a mais longa das jornadas seria o suficiente para preparar o aventureiro para o que estava por vir. Jogou seus longos cabelos negros presos em forma de trança para trás e começou a vasculhar com os olhos as ruínas da cidade em que se encontrava. Vez ou outra encontrava algo valioso em ruínas como aquela. Valioso aliás era um conceito difícil de definir nestas terras, qualquer coisa que pudesse ser útil era trocada por certas provisões em algum povoado.

Lembrou então de tempos distantes, da glória dos aventureiros, das invasões à grandes masmorras e das riquezas em ouro e prata que elas continham. O mundo havia mudado desde então, agora uma espada de aço bem afiada valia mais do que três vezes o seu peso em ouro, um cavalo saudável e jovem saia mais caro do que doze escravas virgens e até um pão de um quarto de quilo valia mais do que os outrora metais preciosos em mesma quantia. Mas mesmo sendo realista, Fënfallas ainda colecionava pequenos objetos que encontrava. Talvez fosse um sopro de sua tradição élfica, sempre admirando pequenas formas de arte, ou talvez fosse apenas tolice de alguém quem ainda se prende às glórias do passado. De qualquer forma, abaixou-se e apanhou uma pequena jóia do chão poeirento.

Eram dois pingentes em forma de folha de bordo e estavam negros e gastos, mas o elfo percebeu que se tratava de prata. Pelo tamanho das jóias elas já valeriam pouco nos tempos áureos, pela baixa quantidade de metal nobre utilizada. Nos dias de hoje, valiam menos que um gole de água fresca. Rejeitando novamente a norma padrão, Fënfallas as guardou num dos bolsos do cinto e levantou-se para partir.

Naquela tarde, enquanto o sol poente banhava de vermelho o cume da montanha, deu-se início a lenda que estou prestes a lhes contar.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

libertas que sera tamen

Uma vez Dagoberto sentiu saudades e achou que fosse uma coisa ruim. Ruim, percebeu ele, não era lembrar o passado, era sentir falta dele, desejar estar vivendo aquilo novamente ao invés do que está vivendo no momento.
Cada segundo que perdeu lembrando o passado foram segundos que perdeu de viver o presente. E ele nunca foi muito bom com essa coisa toda de viver.
Viver é por demais complicado, tem seus desafios e obstáculos.

Mas Dagoberto é um Guerreiro, sempre superou suas dificuldades com muita luta e suor. Quase como se fosse possível resolver todos os seus problemas apenas com garra e determinação. Mais velho percebeu que não. Ele desejou então ter sido um Mago, ao invés de um Guerreiro. Pois um Mago poderia com algum feitiço voltar ao passado e ordenar a si mesmo que não fosse Mago ou Guerreiro, que fosse apenas Dagoberto, como tantos um dia quiseram ser.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

ser e não ser

Naquela manhã de terça-feira esperava aprender um pouco sobre física mas insistiu em desviar os olhos do professor Estanislau para a carteira ao lado. O professor Estanislau é tudo que se pode esperar de um professor de física com este nome ao contrário da garota entediada ao lado, o que explica seu ímpeto em observá-la. O nome dela é Cecília e tudo o que se pode afirmar sobre ela é: Cecília é uma moça bonita.

Atravessando a movimentada rua a passos ligeiros na saída da escola Cecília de repente perde a identidade. A identidade como todos sabem é uma coisa muito desagradável de se perder, não é como uma nota de 50 cruzados que pode ser devolvida pela pessoa que caminhava logo atrás de você e a viu cair de seu bolso antes mesmo de se questionar porque uma colegial carregaria uma nota de 50 cruzados no bolso da saia.

A idéia de personalidade nunca afligiu Cecília até aquele momento. Foi como cair de um lugar muito alto direto em uma piscina escura de águas frias quando percebeu que poderia não ser quem pensa que é.

A noção de realidade atormentou a jovem. Toda a sua noção de mundo até hoje foram registradas por seus sentidos o que significa que eles são sua única conexão com o mundo, logo as outras pessoas também devem se relacionar com o mundo da mesma forma o que torna toda a sua existência resumida a impressões que ela deixa na percepção de outras pessoas.

Nada do que Cecília pensou, sentiu ou fez nunca de fato aconteceu se não tiver sido relatado ou presenciado. De repente sentiu arrependimento de todas as vezes que ficou sozinha trancada em seu quarto com seus pensamentos, algo que até então ela sempre gostara de fazer. Percebeu que ao se isolar, deixava de existir aos poucos.

E é neste exato momento em que sente seu corpo explodir, a dor e a sensação de vazio completam o trauma do choque: Cecília não era o resultado de seus pensamentos, nunca foi. Ela era o resultado de seus atos. Percebeu que não é quem você é que te define, é o que você faz. E assim, tão rápido como uma idéia, se despediu do mundo. Ele jamais seria o mesmo pra ela.

E é neste exato momento em que sente seu corpo explodir, a dor e a sensação de vazio completam o trauma do choque: Cecília havia sido atropelada. A idéia de parar subitamente no meio da rua pode não ter sido uma boa idéia afinal de contas. Ah suas idéias, sempre a pregando peças, pensou. E assim, tão rápido como uma idéia, se despediu do mundo. Ele jamais seria o mesmo sem ela.

Cecília, a moça bonita boa em biologia, campeã de vôlei e três vezes consecutivas eleita a mais bem vestida pelo jornal do colégio deixará pais saudosos e amigos que se espelharão em suas conquistas.

Cecília, a moça gorda com distúrbios alimentares, atormentada pelo fantasma do seu avô que a violentou aos dez e invisível aos olhos do amado, esta nunca existiu.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

a arte de amar

Creio eu que o amor é a arte de almejar o inatingível e incompreensível ser de outrem.

Pois o ser que se pode atingir, alcançar, é concreto. Tem textura, forma e cor. E algo tão bem definido acaba com a imaginação de qualquer coração apaixonado.

Um ser compreensível se torna previsível, pra não dizer invisível. Os sentidos aprendem a tratar com indiferença o que lhes é por demais familiar.

O que é belo no amor é a naturalidade, o prazer, a idealização, a intangibilidade... Ah! A paixão.

Eis que a paixão se torna o grande vilão. Sim.

Paixão, esta prima tão próxima que impede o Amor de florecer em sua plenitude.
Que mata, ou cria raízes. Que destrói ou edifica. Que vai, ou fica.

E quem é que decide? De certo, eu é que não.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

amoro-te

Inventei uma nova palavra:
Amoro-te!

Pensei em dizer que te amo.
Pensei em dizer que te adoro.

Mas não te amo somente
porque te amo com adoração.

Amoro-te.

Pois adorar é amar com d... de dor.
E isso é que não!

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

comoção

Arthur poderia ter sido o rei da Inglaterra, mas preferiu se formar arquiteto em uma universidade privada. Explorar seu potencial nunca fora uma prioridade porque era muito cansativo e não sobraria tempo para assistir Seinfield.

Certo dia, zapeando os canais da TV entre Briget Jones e Grey's Anatomy, Arthur teve a idéia de desenhar um cômodo em forma de coração e para isso, usou o seu como modelo. Mas depois de alguns rascunhos, achou pouco funcional a forma padrão de coração e imaginou o seu como sendo retangular. Como a idéia o agradou ele não pensou em outra, embora mais tarde tenha percebido que um cômodo retangular era uma coisa completamente comum e fugia totalmente de sua idéia original.

Os móveis não combinavam uns com os outros porque foram comprados em épocas diferentes. O piso era de madeira polida, dura e inflexivem como seu pai. O papel de parede era florido e amarelo, com certeza algo retirado de algum lugar dos anos 50 que de certa forma o faziam recordar sua mãe. A cama, confortável e belíssima, estava sempre ali quando ele precisasse descansar seus problemas e Arthur se lembrou de tantas outras camas que ele um dia se deitou e percebeu que nenhuma era equiparável a Alice, ela definitivamente seria uma cama para o resto da vida.

Tantos outros móveis, prateleiras, livros, quadros e objetos decorativos entulhavam a visão de quem olhasse para o quarto, porque Arthur decidiu que o cômodo seria um quarto, porque seu coração deveria ser o lugar mais confortável. E então percebeu que tudo ali naquele lugar havia sido deixado por alguém que amava ou havia amado e embora pudesse, com certa dficuldade, substituir as camas, não conseguia se desfazer do resto. Cada objeto naquele quarto representava alguém e isso fez muito sentido quando Arthur percebeu que aquele peso de papel que representava seu colega de trabalho não se comparava em tamanho com a cômoda de seis gavetas que eram seus amigos.

Dentro dessas gavetas Arthur guardou coisas importantes para si e se surpreendeu quando imaginou a importância dessas coisas para seus amigos. E chorou. Havia um espaço vago entre a terceira e a quinta gaveta, uma delas se quebrou a muito tempo e foi jogada fora, mas o que Arthur guardava nela ainda estava espalhado no chão.

"Quem dera pudesse viver trancado neste quarto" pensou. Atravesou a porta, o papel e a tinta de volta à vida, dobrou seu desenho em quatro partes e em um deles desenhou uma fechadura. Guardou o papel na carteira e aproveitou para contar seu dinheiro. "Quanto deve custar uma tatuagem pequena em forma de chave?" sussurou. "O que disse?" vazou uma voz vinda de outro cômodo. "Não foi nada, Alice, meu amor. Vou sair um instante e já volto!".

"Que bom que saiu um pouco do quarto." Pensou Alice.

Arthur pensou o mesmo.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

prioridades

Pensava.
Pensava como cada segundo anterior de sua vida o levaram àquele momento.
E sentia.
Sentia que cada momento de sua existência dependia daquele segundo.
Ele amava.
Amava cada momento que o levaram aqueles segundos.
Mas sofria.
Por perceber que sua vida era composta de momentos e segundos.
Mas nunca de primeiros.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Assim é bem melhor

Era um fim de tarde qualquer num dia igualmente sem importância e lá estava eu, sentado em meu usual assento a bordo do ônibus rumo à minha casa. É nessas ocasiões em que costumo ficar admirando a paisagem enquanto reflito sobre minha vida, meus problemas e ouço música. Pode parecer estranho, mas é um dos poucos momentos em que eu costumo relaxar e colocar meus pensamentos em ordem com essa vida agitada entre trabalho e estudo em que levo. Se os oitenta minutos em que passo no ônibus são compostos de puro e completo ócio, então que sejam de ócio produtivo. Neste dia no entanto, foi diferente. Ao menos, um pouco diferente.

As pessoas tem a péssima mania de pensar que fico surdo enquanto uso fones de ouvido para ouvir música. Péssimo raciocínio, afinal de contas, por que diabos alguém surdo usaria um fone de ouvido para ouvir o que quer que fosse? Enfim, lá estava eu gozando de meu ócio produtivo (e surdo) quando ouvi alguém falando sobre mim a uns dois metros ao fundo. Como qualquer pessoa de bom senso, foquei minha atenção na conversa. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que a guria que falava, dirigia comentários maldosos e sem fundamento à minha pessoa, baseada em sua grande perspicácia e subjetividade (leia-se: espalhando fofoca sobre mim, do nada).

Poucas coisas me chateiam mais do que soletrar Friedrich Nietzsche, mas uma delas, sem dúvidas, é saber que estão espalhando histórias falsas (e sem fundamento) sobre mim. Pensei em ir até lá e conversar com a guria, dizer a ela que é muito mal educado espalhar fofocas sobre pessoas, ainda mais quando elas estão presentes, e sei que ela sabia que eu estava presente pois subimos no onibus no mesmo ponto. Então me veio a cabeça que talvez ela houvesse pensado que eu não estivesse ouvindo, pois claro, é bem mais educado falar mal dos outros quando eles não podem lhe ouvir.

Prefiri me abster de qualquer ação, não gosto que nada interrompa esse momento de paz, sossego e solidão que tenho quase todos os dias indo e voltando da faculdade. E essa guria já havia me tomado tempo demais. Perdido em meus pensamentos, porém ainda chateado, pensei no que poderia me deixar contente novamente. Foi quando dirigi toda minha infelicidade para a guria e imaginei-a dançando a primeira música dos REB3LDES que me veio a cabeça, se é que de fato aquela gorda desajeitada conseguiria dançar qualquer coisa que fosse. No mesmo instante recobrei meu humor habitual: indiferente.

E lá estava eu novamente, pensando, olhando as árvores e ouvindo música. Surdo, é claro.